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Propostas para educação antirracista são discutidas em Audiência Pública

por Patrícia Drummond publicado 08/02/2022 23h30, última modificação 09/02/2022 12h02
Propostas para educação antirracista são discutidas em Audiência Pública

Marcelo do Vale

Uma agenda voltada a ressignificar e reconstruir conceitos e comportamentos que fundamentam o racismo, o preconceito e a discriminação especialmente com relação a negros e indígenas. Esse foi o principal objetivo da Audiência Pública Afroletramento, Literatura e Atitudes Sociais: por uma educação antirracista, realizada na tarde desta terça-feira (8), de forma híbrida (presencial e online), na Câmara de Goiânia. O evento foi proposto pela vereadora Aava Santiago (PSDB), presidente da Comissão de Educação da Casa, e reuniu especialistas, representantes de órgãos públicos e de entidades envolvidos na questão, além de estudantes. 

“É preciso mobilizar a rede municipal para que a Educação cumpra o papel que lhe cabe em uma nova narrativa de nossa identidade, resgatando as contribuições de negros e indígenas na formação cultural, literária, religiosa e social brasileira”, destacou a vereadora, ao abrir a Audiência Pública. A intenção, a partir do debate, é mobilizar profissionais em torno de uma política educacional capaz de fazer frente à discriminação e ao preconceito, em suas diversas manifestações. Também está sendo preparado um levantamento junto a professores das redes municipal e particular sobre as dificuldades enfrentadas nessa área. A proposta é traçar um plano direcionado a preparar professores e servidores, apresentando conteúdos e metodologias junto a estudantes, no sentido de viabilizar a abordagem da temática étnico-racial nas escolas goianienses. 

Um dos pilares do conceito de afroletramento – ou letramento racial - é exatamente desenvolver a capacidade de interpretar códigos e práticas racistas presentes no cotidiano. É a correção no pensar e no agir, desconstruindo formas discriminatórias, naturalizadas na sociedade. Isso, apesar de o racismo ser identificado, na Constituição Federal, como uma forma de violação dos direitos e liberdades individuais, e constituir crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão. Vale lembrar, ainda, duas leis federais que amparam a iniciativa de trabalhar pela educação antirracista: a 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2010. A primeira inclui no currículo oficial da rede de ensino fundamental e médio, público e privado, a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’. A segunda amplia a abordagem para ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’.

O professor Edergênio Negreiros Vieira, de Anápolis, detalhou o conceito para os participantes da Audiência Pública. Escritor, ele lançou a coleção Afroletramento, destinada a alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, e a professores que lecionam neste nível de ensino. A coleção é composta por cinco livros: ‘O Menino que Escrevia na Parede’, ‘Abidemia: a Força da Superação’, ‘Tem Gente de Todo Jeito’, ‘Africalidades’ e ‘Na Horta da Vovó Lina’. Todos têm como tema focal a inclusão e demandas por maior conhecimento e valorização da cultura afro, reforçando a importância de lecionar sobre a temática que tem ligação direta com a formação da população brasileira, composta sobretudo pela mistura dos povos indígenas, africanos e europeus.

Segundo Edergênio, a ideia para a criação das obras surgiu ainda na infância, quando ele lia livros e não se sentia representado. Isso significa, por exemplo, que a história dos negros não começa na escravidão, assim como a história dos imigrantes não começa no Brasil, constatações tão óbvias quanto o fato de que a cor da pele não pode – ou ao menos não deveria – determinar absolutamente nada acerca de uma pessoa, nunca. “A luta continua, é a mesma de sempre, desde que este País foi formado. Nossa base é miscigenação, mistura, diversidade. Quando se fala em racismo estrutural, o que se tem de novo é sair da negação”, afirmou a professora Ivonilde Rodrigues Nogueira Gonçalves, representante do Conselho Municipal de Educação. 

Ranilson Reis Júnior, da União Estadual dos Estudantes de Goiás (UEE-GO), frisou a importância da pauta por sua contribuição ao “empoderamento dos corpos negros dentro da sociedade”. Sobretudo após as notícias frequentes de práticas racistas, de agressão e de violência contra pessoas pretas – o caso do congolês Moise Kabagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro, foi citado pela maioria dos convidados. “A vida de um negro não é tida como uma vida de valor. Que futuramente sejam eles que estejam aqui, sentados nessas cadeiras, como parlamentares”, falou. 

O representante da UEE-GO lembrou que, neste ano, haverá revisão da Lei de Cotas. E declarou que há muito o que avançar, ainda, no que diz respeito à questão. “As UEEs de todo o Brasil estão lançando a campanha Cotas Sim! Queremos envolver a população nesse debate, discutir as políticas públicas na área. Entendemos que tudo passa pela Educação e uma grande parte não tem acesso. Isso ficou muito claro nessa pandemia”, acrescentou.

RACISMO NORMALIZADO

Diretor da Secretaria de Gênero e Etnia do Sindicato dos Professores do Estado de Goiás (Sinpro-GO), o professor Domingos Barbosa dos Santos, o Dumas, argumentou ser imprescindível discutir uma educação antirracista, pois só a educação transforma a forma de pensar. Mas ressaltou que é necessário, antes de tudo, uma posição da educação. “Professores, escolas e diretores estão dispostos e abertos ao afroletramento?”, questionou. O representante do Sinpro-GO sugeriu que seja feito um mapeamento, em todas as escolas, dos estudantes negros, indígenas e ciganos. 

“Temos hoje, nas escolas, um currículo embranquecido, construído sob um olhar branco. O normal, no dia a dia, é falar a linguagem do branco; a linguagem brasileira é racista”, declarou o professor Dumas, apontando a existência de palavras e expressões racistas utilizadas cotidianamente – a exemplo de denegrir, ‘samba do crioulo doido’, ‘não sou tuas negas’, ‘ter um pé na cozinha’, dentre outras.  “A branquitude é misógina, machista, mas é minoria. Domina porque ocupa espaços, detém poder econômico, cultural. Atua com desrespeito aos seres humanos pela cor da sua pele, embora a imensa maioria seja preta”, sustentou. 

Sobre as agressões e violências sofridas diariamente, Dumas foi incisivo: “Não podemos nos tornar criminosos, vingativos, mas, sim, devemos exigir que as leis sejam cumpridas. Afinal, a forma de organização do povo preto é diferente: na cultura quilombola não se pensa individualmente, se pensa coletivamente”. A posição foi compartilhada por Ieda Leal, do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Sintego). “Temos leis e precisamos buscá-las. Nós, negros, sabemos o valor da palavra coletivo. Precisamos cobrar formação continuada dentro das escolas para todos, precisamos cobrar punições. Respostas precisam ser dadas todos os dias”, pontuou.

Warlúcia Pereira e Jefferson Acevedo, da Secretaria Municipal de Educação; e Kellen Cristina Prado da Silva, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), completaram o time de convidados da Audiência Pública. Em suas falas, destacaram ações afirmativas, projetos e programas de formação visando a revisão de conhecimentos, ressignificação e ampliação dos currículos escolares. Também presentes, Kira Jardim, fundadora do Salão Kiras, e a estudante Ana Beatriz, criadora do Projeto Conte, blog dedicado ao compartilhamento de histórias de pessoas pretas. 

Entre as várias sugestões e propostas feitas por professores e escritores na Audiência Pública, uma deverá, em breve, se transformar em projeto de lei assinado pela vereadora Aava Santiago: a criação, em Goiânia, do Selo da Educação Antirracista. A intenção é reconhecer escolas públicas e privadas comprometidas com essa temática ao longo de todo ano.

Os profissionais presentes ao evento realizado nesta terça-feira participam de um grupo de trabalho formado pela Comissão de Educação da Câmara. Nos dias 10 e 28 de janeiro eles participaram de encontros virtuais que culminaram com a realização da Audiência Pública. Desde o dia 25, o grupo realiza um levantamento junto a professores das redes municipal e particular com a expectativa de promover um mapeamento de ações pedagógicas afro-centradas e étnico-raciais nas escolas da capital. O questionário online busca respostas dos docentes sobre os desafios para se assegurar o cumprimento do que determinam a legislação e as necessidades pedagógicas, no campo da educação antirracista.